sábado, 24 de dezembro de 2011

Epifanias Pessoanas (8)

A Aranha

A aranha do meu destino 
Faz teias de eu não pensar. 
Não soube o que era em menino, 
Sou adulto sem o achar. 
É que a teia, de espalhada 
Apanhou-me o querer ir... 
Sou uma vida baloiçada 
Na consciência de existir 
A aranha da minha sorte 
Faz teia de muro a muro... 
Sou presa do meu suporte.

Fernando Pessoa

Trechos (1)

"De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."


Rui Barbosa

domingo, 30 de outubro de 2011

Inconfesso Desejo

Queria ter coragem
Para falar deste segredo
Queria poder declarar ao mundo
Este amor
Não me falta vontade
Não me falta desejo
Você é minha vontade
Meu maior desejo
Queria poder gritar
Esta loucura saudável
Que é estar em teus braços
Perdido pelos teus beijos
Sentindo-me louco de desejo
Queria recitar versos
Cantar aos quatros ventos
As palavras que brotam
Você é a inspiração
Minha motivação
Queria falar dos sonhos
Dizer os meus secretos desejos
Que é largar tudo
Para viver com você
Este inconfesso desejo



Carlos Drummond de Andrade

sábado, 15 de outubro de 2011

Lua Adversa

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.


Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.


E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...


Cecília Meireles

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

Alphonsus de Guimaraens

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.


Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Cecília Meireles

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto 
Desses que vivem na sombra 
Disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. 


As casas espiam os homens 
Que correm atrás de mulheres. 
A tarde talvez fosse azul, 
Não houvesse tantos desejos. 


O bonde passa cheio de pernas: 
Pernas brancas pretas amarelas. 
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. 
Porém meus olhos 
Não perguntam nada. 


O homem atrás do bigode 
É sério, simples e forte. 
Quase não conversa. 
Tem poucos, raros amigos 
O homem atrás dos óculos e do bigode. 


Meu Deus, por que me abandonaste 
Se sabias que eu não era Deus 
Se sabias que eu era fraco. 


Mundo mundo vasto mundo, 
Se eu me chamasse Raimundo 
Seria uma rima, não seria uma solução. 
Mundo mundo vasto mundo, 
Mais vasto é meu coração. 


Eu não devia te dizer 
Mas essa lua 
Mas esse conhaque 
Botam a gente comovido como o diabo. 


Carlos Drummond de Andrade

domingo, 7 de agosto de 2011

Epifanias Pessoanas (7)


Autopsicografia


O poeta é um fingidor. 
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


                                                                                                               Fernando Pessoa

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles

Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.
  
Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.
 
Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.
 
Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou 
chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

? (texto apócrifo atribuido a Vinicius de Moraes)

Quero apenas cinco coisas

Quero apenas cinco coisas..
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser… sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.



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I only want five things
First is the everlasting love
The second is to see the fall
The third is the heavy winter
In fourth place the summer
The fifth thing it's your eyes
I don't want to sleep without your eyes
I don't want to be... without you looking at me
I will give up spring so that you keep looking at me






Pablo Neruda

Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís Vaz de Camões

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Epifanias Pessoanas (6)

Liberdade
(falta uma citação de Sêneca¹)
Ai que prazer 
Não cumprir um dever, 
Ter um livro para ler 
E não o fazer! 
Ler é maçada, 
Estudar é nada. 
O sol doira 
Sem literatura. 
O rio corre, bem ou mal, 
Sem edição original. 
E a brisa, essa, 
De tão naturalmente matinal, 
Como tem tempo não tem pressa... 

Livros são papéis pintados com tinta. 
Estudar é uma coisa em que está indistinta 
A distinção entre nada e coisa nenhuma. 

Quanto é melhor, quando há bruma, 
Esperar por D. Sebastião, 
Quer venha ou não! 

Grande é a poesia, a bondade e as danças... 
Mas o melhor do mundo são as crianças, 
Flôres, música, o luar, e o sol, que peca 
Só quando, em vez de criar, seca. 

O mais do que isto 
É Jesus Cristo, 
Que não sabia nada de finanças 
Nem consta que tivesse biblioteca... 



Fernando Pessoa


¹Sêneca: filósofo estóico; via no cumprimento do dever um serviço à humanidade.

Epifanias Pessoanas (5)

Não tenhas nada nas mãos 
Nem uma memória na alma,

Que quando te puserem 
Nas mãos o óbolo¹ último, 

Ao abrirem-te as mãos 
Nada te cairá. 

Que trono te querem dar 
Que Átropos² to não tire?

Que louros que não fanem 
Nos arbítrios de Minos³?

Que horas que te não tornem 
Da estatura da sombra

Que serás quando fores 
Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flôres mas larga-as, 
Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica 
E sê rei de ti próprio.

Ricardo Reis*

*Ricardo Reis: um dos heterónimos mais conhecidos de Fernando Pessoa, em suas obras podemos observar uma forte presença do fatalismo, do epicurismo e do estoicismo, além de recorrentes alusões mitológicas.

¹óbolo: nome dado a moeda que costumavam colocar nos mortos para pagar a viagem ao Hades
²Átropos(Morta): uma das três Moiras na mitologia grega, a responsável pelo corte do fio da vida.
³Minos: filho de Zeus, rei da ilha de Creta. Segundo a mitologia, depois de morto desceu ao mundo subterrâneo e tornou-se um dos juízes dos mortos.


Epifanias Pessoanas (4)

Esta espécie de loucura 
Que é pouco chamar talento 
E que brilha em mim, na escura 
Confusão do pensamento. 

Não me traz felicidade; 
Porque, enfim, sempre haverá 
Sol ou sombra na cidade. 
Mas em mim não sei o que há. 


Fernando Pessoa

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.




Luís Vaz de Camões

terça-feira, 26 de julho de 2011

Bilhete / Note

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!


Se me queres, enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...


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If you love me, love me quietly
Don't shout over the roofs
Leave the birds alone
Leave me alone!


If you do want me, at last,
it has to be slowly, Darling,
because life is quick, and love, quicker than that...


Mário Quintana

Lira Romantiquinha / A Romantic Lyric

Por que me trancas                                                                               
o rosto e o riso                                                                                      
e assim me arrancas                                                                            
do paraíso?                                                                                                

 
Por que não queres,                                                                              
deixando o alarme                                                                                
(ai, Deus: mulheres!),                                                                          
acarinhar-me?                                                                                          



Por que cultivas                                                                                    
as sem-perfume                                                                                      
e agressivas,                                                                                            
flores do ciúme?                                                                                       



Acaso ignoras                                                                                          
que te amo tanto,                                                                                  
todas as horas,                                                                                        
já nem sei quanto?                                                                                   



Visto que em suma                                                                                
é todo teu,                                                                                                  
de mais nenhuma,                                                                                  
o peito meu?                                                                                               



Anjo sem fé                                                                                              
nas minhas juras,                                                                                  
porque é que é                                                                                        
que me angusturas?                                                                                

 
Minh'alma chove                                                                                    
frio, tristinho.                                                                                          
Não te comove                                                                                        
este versinho?              



_________________________________________________________________                                                                             


Why do you lock
the face and laughter
and that way pull me out
from heaven?


Why don't you want,
leaving the alarm
(oh, God: women!),
cuddle me?


Why cultivate
the non-perfumed
and aggressive,
flowers of jealousy?


In case you ignore
that I love you so,
all the time,
I can't even say how much?


Since in short
is all yours,
and no one else,
my chest?


Angel without faith
in my vows,
why is it
that you torment me?


My soul rains
cold, sad.
Aren't you touched
with this little verse?


Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.






"Que não seja imortal, posto que é chama                                                    Mas que seja infinito enquanto dure."

Vinicius de Moraes

domingo, 24 de julho de 2011

Epifanias Pessoanas (3)

A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade de dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.  
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou. 
Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou. 
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis¹. 
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.

¹ excelsis: do latim, algo semelhante a "altura"


Fernando Pessoa (Bernardo Soares²) - Livro do Desassossego/The Book of Disquiet


² Bernardo Soares: one of Pessoa's many heteronyms/semi-heteronyms, author of  "The Book of Disquiet" 

domingo, 10 de julho de 2011

Epifanias Pessoanas / Pessoa's Epiphanies (2)

   Gato que brincas na rua                                               Cat that plays on the street
   Como se fosse na cama,                                               As if you were in your bed
   Invejo a sorte que é tua                                               I envy your luck
   Porque nem sorte se chama.                                     Because one can't even call it that

   Bom servo das leis fatais                                             Good servant of the fatal laws
   Que regem pedras e gentes,                                       That rules over rocks and people,
   Que tens instintos gerais                                             You have general instincts
   E sentes só o que sentes.                                             And feel only what you feel.

   És feliz porque és assim,                                             You are happy because you are thus,
   Todo o nada que és é teu.                                           All the nothingness that you are is yours.
   Eu vejo-me e estou sem mim,                                   I see myself and I'm without me,
   Conheço-me e não sou eu.                                         I know myself and I'm not me.




Fernando Pessoa



sexta-feira, 8 de julho de 2011

Consolo na praia / Comfort on the beach

Vamos, não chores...                                                            Come on, don't cry...
A infância está perdida.                                                       Childhood is lost.
A mocidade está perdida.                                                   The youth is lost.
Mas a vida não se perdeu.                                                   But life isn't lost.
O primeiro amor passou.                                                    The first love passed.
O segundo amor passou.                                                     The second love passed.
O terceiro amor passou.                                                      The third love passed.
Mas o coração continua.                                                     But the heart remains.
Perdeste o melhor amigo.                                                   You've lost your best friend.
Não tentaste qualquer viagem.                                         Haven't tried any trip.
Não possuis carro, navio, terra.                                       Do not own a car, ship, land.
Mas tens um cão.                                                                     But you do have a dog.
Algumas palavras duras,                                                      Some harsh words,
em voz mansa, te golpearam.                                             in a soft voice, overthrew you.
Nunca, nunca cicatrizam.                                                    Never, never heal.
Mas, e o humour?                                                                    But, what about the humour?
A injustiça não se resolve.                                                   Injustice isn't solved.
À sombra do mundo errado                                                In the shadow of the wrong world
murmuraste um protesto tímido.                                     you've mumbled a shy protest.
Mas virão outros.                                                                     But others will come.
Tudo somado, devias                                                             All in all, you should
precipitar-te, de vez, nas águas.                                        burst yourself, once, in water.
Estás nu na areia, no vento...                                              You're naked in the sand, in the wind...
Dorme, meu filho.                                                                    Sleep, my child.

Carlos Drummond de Andrade